Antártica em transformação: por que o ritmo da perda e ganho de gelo mexe com o resto do planeta?

Entre 2002 e 2023, cientistas chineses detectaram variações inéditas na massa de gelo da Antártica, com ganho temporário após anos de perdas, revelando como nevascas podem adiar, mas não deter, o avanço do mar futuro.

Antártica, gelo
O gelo antártico, em camadas maciças e frágeis, simboliza um continente que alterna perdas aceleradas e ganhos temporários de massa, como revela o novo estudo sobre 2002‑2023.


A vastidão branca que cobre o Polo Sul costuma parecer estática quando vista de longe, mas cientistas da Academia Chinesa de Ciências e da Universidade Normal de Pequim acabam de mostrar que a realidade é bem diferente. Em um estudo publicado na revista Science China Earth Sciences, a equipe analisou, mês a mês, as mudanças de massa de gelo na Antártica entre 2002 e 2023.

O foco recaiu sobre quatro bacias glaciais na região de Wilkes, Queen Mary Land, Denman, Moscow, Totten e Vincennes Bay, áreas que já foram consideradas relativamente estáveis.

Os resultados surpreenderam: depois de uma década (2011‑2020) de forte derretimento, a camada de gelo antártica registrou um breve período de ganho entre 2021 e 2023, reduzindo em cerca de 15 % sua contribuição acumulada à elevação do nível do mar. No entanto, a pesquisa alerta que a tendência geral ainda é de perda acelerada, impulsionada por mudanças no balanço de massa de superfície, combinação delicada entre neve que cai, gelo que derrete e água que escorre para o oceano.

O que os cientistas descobriram

O rastreamento de duas décadas revelou que, entre 2011 e 2020, a Antártica perdeu em média 142 ± 56 gigatoneladas de gelo por ano, volume capaz de elevar o nível global dos mares em quase 1 milímetro a cada 24 meses. As bacias de Wilkes, Queen Mary Land foram responsáveis por 47,6 Gt/ano desse total, um salto de 40 % em relação ao começo do século.

Gelo, Antártida,
O derretimento da Antártida se intensificou na última década, com grandes perdas de gelo que já impactam o nível do mar em escala global.

Nos três anos seguintes, porém, a balança virou: eventos de neve intensa sobre a calota provocaram um ganho líquido de massa equivalente a cerca de 0,9 mm a menos de subida do mar. Mesmo assim, Denman e Vincennes Bay continuaram perdendo gelo de forma “agressiva”, segundo os autores. Isso evidencia quão sensível é a criosfera antártica a variações relativamente pequenas nos padrões de precipitação e temperatura do oceano Austral.

Como o estudo foi feito

Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores combinaram medições de satélites gravitacionais GRACE e GRACE‑FO com um modelo de “mass points” que corrige ruídos matemáticos e melhora a resolução espacial das estimativas. A abordagem permitiu enxergar detalhes que antes ficavam borrados em regiões costeiras recortadas por fiordes de gelo.

  • Os dados cobrem abril de 2002 a dezembro de 2023, quase sem lacunas mensais.
  • O algoritmo calcula a variação de massa em células de cerca de 50 km, refinando o foco nos glaciares.
  • Foram integradas informações de radar de penetração de gelo e séries de precipitação reanalisadas pela ECMWF.
  • Um teste de sensibilidade atribuiu 72,5 % da perda intensificada nas bacias ao declínio do acúmulo de neve e 27,5 % ao aumento do fluxo de gelo para o mar.

Por que isso importa para o futuro

Para o Brasil, onde 60 % da população vive em áreas costeiras, cada milímetro a mais, ou a menos, no nível dos mares faz diferença em investimentos bilionários para conter a salinização de aquíferos e proteger infraestrutura portuária. O fato de o leste antártico, antes considerado um “gigante adormecido”, mostrar sinais de instabilidade preocupa oceanógrafos: se a base rochosa sob o glaciar Denman estiver abaixo do nível do mar, um recuo súbito poderá liberar gelo suficiente para elevar os oceanos em vários centímetros.

Além disso, o estudo reforça a necessidade de monitoramento contínuo. A breve fase de ganho de massa entre 2021 e 2023 coincidiu com um raro episódio de forte La Niña, que aumentou a umidade sobre a Antártica. No novo cenário de aquecimento global, extremos climáticos como El Niño e La Niña tendem a ficar mais intensos, tornando os balanços de neve e gelo ainda mais erráticos. Em outras palavras, a “trégua” recente pode ter sido apenas um soluço estatístico, e confiar nela seria como construir castelos de areia bem na linha da maré.

Referência da notícia

Spatiotemporal mass change rate analysis from 2002 to 2023 over the Antarctic Ice Sheet and four glacier basins in Wilkes-Queen Mary Land. 19 de març0, 2025. Wang, W., Shen, Y., Chen, Q. et al.